dica de filme ("Lucky")

Dica de Filme

Lucky
2017
Direção: John Carroll Lynch



FILME TESTAMENTO DO ATOR HARRY DEAN STANTON É UM TRISTE, MAS BONITO RÉQUIEM EM HOMENAGEM À VIDA

"- O realismo é uma coisa. É a prática de aceitar uma situação tal como ela é, e estar preparado para lidar com ela.
- Está dizendo que o que você vê é a sua realidade?
- Mas, o que você vê não é a minha realidade."

A velhice e os problemas que chegam com ela sempre foram bem explorados no cinema, e o mais recente filme a abordar o assunto é "Lucky", último filme com a participação do estupendo ator Harry Dean Stanton, falecido em setembro do ano passado. E, a produção, coincidentemente, acaba funcionando como uma espécie de "testamento" para o ator, como sendo o seu último trabalho em vida, e, como ele próprio já numa idade avançada e debilitado, o longa consegue transmitir uma aura ainda mais triste e melancólica.




O filme já começa com uma provocação: expõe, sem muito pudor, o corpo já velho e cansado do protagonista Lucky. Num mundo onde o culto a corpos jovens e sarados é quase uma regra, mostrar alguns detalhes de um corpo assim, de fato, é uma ousadia. E, então, através dos detalhes de sua rotina, como escovar os dentes, calçar as suas botas, tomar um pouco de leite de caixa na geladeira, e ir caminhar pela pequena cidade onde reside, numa espécie de "ordem", vamos conhecendo um pouco do personagem principal, quem o circunda.

Interessante que o filme nos diz muita coisa através, ironicamente, de "pequenas coisas". Exemplo disso é um livreto de palavras-cruzadas que Lucky carrega consigo, que, ao visitar os amigos num restaurante ou num bar, sempre tem a "palavra do dia", aquela que ele conseguiu descobrir no jogo das cruzadas. 

E, naquele momento em que a produção se passa, a palavra é justamente "realidade" (é daí que surge o diálogo no início deste texto). É, inclusive, nesse instante, que percebemos que Lucky tem uma visão um tanto realista demais (pra não dizer pessimista e sombria) sobre a vida. E, agora, que o tempo passa e ele sente cada vez mais o peso da idade, essa percepção vai ficando mais aguda.




É, então, que o filme acompanha o personagem em sua jornada de aceitação da velhice, mas também entendendo que não precisa se render a um fim da vida que ainda nem chegou. E, é a partir daí que a produção acerta bastante, porém, às vezes, erra feio. 

Um desses erros é colocar algumas situações um pouco constrangedoras, que se mostram um pouco forçadas, como a sequência em que Lucky chama um homem bem mais jovem para uma briga. Claro, nada acontece, a a cena só serviu para mostrar o quanto Lucky está insatisfeito com o seu corpo debilitado, e quer "provar" algo. Porém, convenhamos que isso de um homem mais velho tentar demonstrar uma grande virilidade é um clichê um tanto vergonhoso (vide "Gran Torino").

No entanto, felizmente, há bem mais momentos bons do que ruins do longa, e que dão o tom necessário de reflexão para que nós não apenas pensemos a respeito da condição do protagonista, mas, de coisas mais amplas até. 

Uma dessas ótimas cenas é quando Lucky encontra um veterano de guerra, e, conversa vai, conversa vem, o veterano questiona como ainda conseguimos encontrar alegria em meio ao horror, e que, para isso, não fazem medalhas. Inclusive, o personagem interpretado por David Lynch também dá uma bela contribuição às reflexões que o filme quer fazer junto conosco, de início, aparecendo com uma conversa um tanto dispersa sobre o seu jabuti de estimação, e terminando a sua participação no longa com um ótimo diálogo, quase um conselho ao protagonista.



Não é preciso nem dizer que Harry Dean Stanton está espetacular aqui, não é verdade? Mas, sim, é preciso que se repita: em "Lucky", ele está espetacular. Coincidência do destino ou não, não se sabe se ele já tinha uma vaga consciência de que ia partir, mas, o certo é que o ator transpira aqui uma paz, uma leveza e um amor pela vida tão grandes, que é impossível não se emocionar com a presença dele em cena. 

Os outros atores também estão bons, conscientes de seus papeis (alguns bem pequenos e passageiros na trama), e de que o filme É de Stanton, e somente dele. A direção de linear e correta, sem grandes atrativos, mas, pra uma estória assim não precisava de muito, na realidade.

Apesar de uma ou dois forçações de barra e de uma passagem de atos um tanto quanto episódica (como se estivéssemos vendo uma série para TV), o filme tem um protagonista e uma estória tão fortes, que sustentam o longa como um belo exercício de dialogar com espectador de sobre coisas das quais muitos preferem nem pensar, como a proximidade da morte. A cena final, com Harry Dean Stanton olhando para a câmera, sorrindo e "indo embora" é de uma simbologia extremamente emocional.

Obrigado, Sr. Stanton. Obrigado, mesmo!

"- Conheço a verdade, e ela importa. A verdade é uma coisa. É a verdade de quem somos e o que fazemos. E, você tem que enfrentá-la e aceitá-la. Porque a verdade do universo está esperando. A verdade do que é, para todos nós. 
- Que é...
- Que tudo vai desaparecer. Vira escuridão, vazio. Ninguém está no comando. E, só lhe resta o nada. Nada. Isso é tudo que existe. 
- E, o que fazemos com isso?
- Você sorri."


NOTA: 8,5/10


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