Dica de Filme

Um Dia de Fúria
1993
Direção: Joel Schumacher


Interpretar obras de arte é sempre complicado, pois, às vezes, é tudo tão controverso nela, que todas as explicações podem não dar conta de dissecar o que o seu autor quis dizer. Vejam o caso de "Tropa de Elite", por exemplo. Até hoje, o seu protagonista, o famigerado Capitão Nascimento, é considerado um verdadeiro herói da ficção. O problema é que o discurso que endeusa esse tipo de personagem está, quase sempre, carregado de ideias equivocadas, preconceituosas e até perigosas. Não que José Padilha quisesse evitar a controvérsia em "Tropa de Elite", mas, em paralelo, chega a ser irracional que um personagem como William Foster, de "Um Dia de Fúria", tenha se transformado num herói, algo que, claramente, o filme não tenta fazer.

Na realidade, tudo acaba facilitando para uma má interpretação desse filme, a começar pelo sugestivo título nacional, que traduziu "Falling Down" (algo como "Caindo") para "Um Dia de Fúria", dando a entender que se trata da história de um "cidadão de bem", tipicamente de classe média, que se revolta contra o sistema de uma hora para a outra. Não é bem assim. De fato, ao enfrentar um enorme engarrafamento, William Foster parece surtar com aquilo, saindo de seu carro, e fazendo o caminho todo a pé. Mas, quando ele entra numa loja para conseguir fichas telefônicas, percebemos que há algo de muito errado com ele além da explosão contra tudo e todos à sua volta. Mostrando-se preconceituoso com imigrantes, e fazendo as vezes de patriota cego, ele destroi a loja com um taco de beisebol. Sim, os preços cobrados pelo imigrante coreano eram abusivos, mas, o acesso de fúria de William denotam mais uma pessoa desequilibrada do que alguém puramente revoltado com a sociedade.




Então, a inusitada jornada do personagem continua, e, ao longo do tempo, vamos entendendo que ali há questões bem mais complexas, como desarranjos familiares, exploração trabalhista, etc (coisas bem mais explicativas do que jargões do tipo: "Bandido bom é bandido morto!"). E, mesmo que as ações de William sejam exageradas e desproporcionais em relação à sua revolta, ele consegue nos passar algumas boas reflexões a respeito do nossos cotidiano, desde as propagandas enganosas, até a ocupação de espaços públicos por gente rica. Não há, necessariamente, um grande aprofundamento dessas questões no roteiro, mas, inserí-los na trama principal (principalmente, em se tratando de um blockbuster), passa aquela saudável ar de subversão, mesmo que esse não seja, repito, o foco da história, e sim, a jornada de uma pessoa com sérios problemas mentais encarando certas situações de maneira não-convencional.

Algumas sequências são muito boas no sentido de fazer o espectador refletir, como o violento encontro de William com um neo-nazista, quando o protagonista expõe que está certo em alguns pontos, como a necessidade da liberdade de expressão. Há também uma em que ele questiona um funcionário da Prefeitura do porquê a rua estar interditada para reforma se ela estava em ótimas condições há apenas dois dias, e que o governo faz isso apenas para justificar os orçamentos, e nos obrigar a pagar mais impostos. Isso dentro de um filme-pipoca é uma excelente oportunidade. Ponto para o roteiro. Mesmo assim, são momentos isolados da trama, e que, apesar de falarem de determinados assuntos da maneira correta, não expõem por completo a personalidade de William, que se mostra também obsessivo e alienado em outros aspectos. Exatamente por isso, tratar o personagem como herói é um erro que ainda hoje persiste.




Infelizmente, mesmo com boas intenções, o filme se rende a alguns convencionalismos do "cinemão", principalmente, quando a polícia está à caça de William. Nesse sentido, é justamente no clímax que a produção tem os seus piores momentos, passando de um drama forte misturado com uma bem-vinda sátira social a um mero exemplar de ação, com um desfecho clichê e moralista. É como se o roteirista tivesse tido medo de ir em frente com suas ideias, e preferiu encerrar tudo da maneira mais convencional possível, o que não deixa de ser uma espécie de "traição" aqueles que compraram o contexto da trama. Essa falha deixa o filme, com certeza, menos corajoso e ousado do que deveria.

As atuações, em geral, estão apenas corretas, com destaque para Robert Duvall, que interpreta um policial prestes a se aposentar. Mas, nesse aspecto, o filme é mesmo de Michael Douglas, que, mais insano do que nunca, empresta muita personalidade a William Foster, e mesmo que não concordemos com a maioria de suas ações, ainda assim, sentimos certa piedade por ele. A direção de Schumacher está em ótima forma, filmando a história com dinamismo e carisma. Poderia ter evitado algumas cenas um tanto ridículas, como a festa de despedida do policial feito por Duvall, mas, ainda assim, é uma condução competente. 




E, no final, o que temos? Um bom filme que mescla bem drama psicológico com sátira social, faz algumas boas críticas, erra ao abraçar certos clichês, mas, cujo saldo é satisfatório. Só isso. Nada nem perto de ser uma genial metáfora sobre o sofrimento do "cidadão de bem" perante uma sociedade opressora, e que clama por justiça. Muita calma nessa hora. Anos depois, percebe-se, mais do que nunca, que William Foster, mesmo tendo as "melhores intenções do mundo", não passa de uma pessoa totalmente sem equilíbrio emocional, e até mesmo burra em alguns momentos, assim como Capitão Nascimento, e tantos "heróis" espalhados por aí. Portanto, melhoremos quando formos escolher os nossos próximos "ícones".


NOTA: 8/10


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