Dica de Filme

O Homem Sem Sombra
2000
Direção: Paul Verhoeven


Verhoeven é o tipo de cineasta provocativo que, realizando, aparentemente, filmes pipoca por natureza, embute em seus filmes algumas ideias interessantes e até meio subversivas. Às vezes, dá muito certo ("Robocop", "O Vingador do Futuro", "Elle"), e, em outras, dá muitíssimo errado ("Showgirls", "Tropas Estelares"). Este "O Homem Sem Sombra", refilmagem de uma produção cult dos anos 30 ("O Homem Invisível"), inspirada num livro de H. G. Wells, está, digamos, num meio termo: não chega a ser tão impactante quanto os melhores trabalhos do diretor, mas, possui alguns subtextos bem incômodos que, dificilmente, seriam filmados nos dias politicamente corretos de hoje.

O diretor, realmente, tem essa capacidade: ir um pouco além do cinema de sua época, provocando reflexões entre aqueles que vão assistir a seus filmes pensando somente em se divertirem. É o que acontece na trama de "O Homem Sem Sombra". A história? Um grupo de cientistas vive às voltas com experiências sobre a possibilidade de tornar seres invisíveis. Pouco a pouco, vamos conhecendo cada um dos personagens, com destaque para o Dr. Sebastian Caine, arrogante e prepotente, cuja personalidade forte será a desgraça do grupo. Ao seu lado, temos a sua ex-namorada Linda McKay, junto com o seu atual companheiro Matthew Kensington. Outros personagens surgirão e desenvolverão ao longo da narrativa, mas, basicamente, tudo girará em torno desses três.




Aos poucos, vamos nos familiarizando com todos os personagens, e o interessante é que, além do protagonista, que é capaz de tudo, os outros também não ficam atrás em termos de falta de ética, realizando experiências que sabem ser perigosas e que provocam sofrimento em suas cobaias. Há, no grupo, inclusive, uma ativistas pelos direitos dos animais, mas, mesmo tentando amenizar a vida deles no laboratório, também está implicada nos acontecimentos. Portanto, não temos aqui um herói (ou, heróis) que irá despertar certa simpatia do público, e torcer por sua vitória no final. Mesmo que no terceiro e último ato, a trama reserve uma espécie de "mocinho x banido" na trama, nenhum personagem no filme é, por assim dizer, alguém íntegro.

No entanto, todas atenções se concentram, mesmo, no Dr. Sebastian Caine, o mais carismático do grupo, e o que irá experimentar a fórmula da invisibilidade em humanos pela primeira vez. E, é a partir dele que a produção faz suas bem vidas reflexões a respeito de algo interessante: e, se fosse dado um grande poder a uma pessoa, ela revelaria quem é de verdade ou isso apenas potencializaria seu caráter (ou, no caso, a falta de)? Só não esperem algo tão profundo quanto nos filmes de Tarkovsky, por exemplo. Lembrem-se: ainda que ousado em alguns pontos, continuamos diante de um típico blockbuster hollywoodiano, e que, como tal, possui seus inúmeros vícios, em especial, no encerramento do longa, que vai, sem pudores, de um suspense de cunho bastante crítico a uma aventura sanguinolenta repleta de violência.




Mesmo com essa falta de coragem dos realizadores em terminarem o filme de maneira mais ousada e interessante, a produção impressiona em outros aspectos, a começar pelos esfeitos visuais, que, até hoje, mostram-se bem executados. As cenas do aparecimento de uma gorila e do desaparecimento de Sebastian, veia por veia, artéria por artéria, músculo por músculo, osso por osso chocam pelo nível de realismo, e, de fato, incomodam. Alguns diálogos são muito bem encaixados no contexto da história, a exemplo do que Sebastian fala em determinado momento, quando se sente desesperado por ser uma cobaia por tanto tempo, devido a problemas decorrentes do processo, o que faz com que ele, forçadamente, seja colocado no lugar dos animais que ele via apenas como experimentos científicos.

Só que o roteiro perde a chance de explorar melhor a degradação moral de quem tem um poder como o da invisibilidade, colocando Sebastian, na maioria das cenas, apenas como um maníaco sexual enrustido, abusando das mulheres ao seu redor sempre que tem oportunidade. Obviamente, muitos homens, na vida real, faria isso (também), no entanto, focar-se somente nesse aspecto limitou, e muito, as possibilidades do filme. É nesse ponto que faz falta um Verhoeven mais ousado, como na época de um "Robocop" ou de um "Vingador do Futuro", que burlava qualquer apelação com bastante criatividade, o que faz de "O Homem Sem Sombra"um ótimo suspense com toques de terror, e alguns momentos de sarcasmo, mas, não algo necessariamente arrebatador. 




As atuações seguem o tom irônico que o filme tenta impor na maior parte do tempo. Kevin Bacon nunca esteve tão cínico e insuportável (no melhor sentido, diga-se). Num misto de gestos e palavras, ele consegue construir um personagem trágico e imoral na medida certa. Outros que se saem bem é Elisabeth Shue, longe de compor a mocinha burra e sempre em perigo (menos mal) e Josh Brolin, que faz talvez o personagem mais sensato da história, mas, que, nem por isso, deixa de se render à tentação do sucesso com as experiências sobre invisibilidade. E, mesmo quando não está em seus melhores dias, Verhoeven sempre consegue ser um ótimo diretor, conduzindo a narrativa de maneira, no mínimo, correta, e acabando tudo na hora certa, sem inchar demais a história. 

"O Homem Sem Sombra" não é nem um pouco fabuloso. Mas, está anos-luz à frente do filme anterior do diretor (o horrível "Tropas Estelares"). É possível até dizer que, em certo ponto, o cineasta está mais contido aqui, só perdendo a mão na conclusão da trama. Mesmo assim, tantos anos depois, ainda continua sendo sendo uma produção interessante, e que suscita algum debate pertinente sobre a ética científica e tudo o mais, mesmo que de maneira rasa, às vezes. Felizmente, o diretor voltou à ótima forma com "Elle", ano passado, esse sim, fazendo jus à sua inquietante filmografia, mostrando que, quando ele não se rende aos clichês da indústria, é capaz de excelentes resultados.


NOTA: 7/10


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