Dica de Disco

Cortes Curtos
2017
Artista: Kiko Dinucci


Uma coisa não falta aos apreciadores de música: reclamações. É quase sempre a mesma lamentação: "hoje em dia, não tem nada que preste na música"; "antigamente, era melhor"; "atualmente, é tudo igual", etc, etc, etc. Mas, o "x" da questão é até que ponto isso procede, e em que momento começa a nossa culpa. Sim, pois, será que reclamamos da mesmice porque apenas procuramos no mainstream, e não buscamos algo de mais diferente no meio alternativo? Há grande possibilidade disso ser verdadeiro, já que, nos últimos anos, temos tido uma boa quantidade de gente talentosa fazendo música de qualidade, só que, fora do eixo comercial. 

O músico paulista Kiko Dinucci é, facilmente, agregado a essa turma que está, há muito tempo, por merecer um espaço bem maior no meio fonográfico. Isso porque, além de outros atributos, ele tem um ótimo gosto para escolher seus parceiros de profissão, entre eles, Thiago França e Juçara Marçal, que, juntos, formam uma das melhores bandas do circuito underground atual, o Metá Metá. Também foram responsáveis por um dos melhores discos brasileiros dos últimos anos: o seminal "Encarnado", primeiro trabalho solo da Juçara Marçal. E, agora, Dinucci vem com disco próprio, intitulado "Cortes Curtos", também com a participação do Thiago e da Juçara.



Pra quem conhece os trabalhos de toda essa turma, não haverá surpresas aqui: uma música com garra, carisma, graça, crítica e, acima de tudo, urgência. Os sons são, propositalmente, desconexos, como numa colagem caótica de referências, mas, que fazem sentido quando se ouve o disco todo, na sequência das canções. E, por isso mesmo, talvez, seja preciso escutar esse disco uma, duas ou até três vezes para se familiarizar com a sua aparente loucura estética. Mas, quando "Cortes Curtos", finalmente, pega na cabeça do ouvinte, não há quem tire mais (exatamente como aconteceu com "Encarnado", da Juçara Marçal).

As letras, em geral, são simples, muitas vezes, com uma frase só, mas, que constituem uma poética única dentro da proposta do álbum, de fazer pequenos recortes do cotidiano, desde coisas mais absurdamente escancaradas do dia a dia ("Uma Hora da Manhã") até a coisas mais intimistas, passando pela falta de empatia e de tempo para reflexão na sociedade atual ("No Escuro"). Mas, felizmente, o disco é multitemático, e, ao mesmo tempo em que encontramos músicas de amor um tanto "inusitadas" ("Inferno Particular"), também encontramos um bom escracho debochado anti-machista ("Quem te Come").


Outro aspecto muito positivo nesse lançamento são as participações especiais. Exemplo é a bela voz de Juçara Marçal, que deixa "Chorei" ainda mais intensa e bonita. Já, Tulipa Ruiz empresta o seu jeito histérico do bem para deixar "O Inferno tem Sede" ainda mais interessante. Na provocativa "Quem te Come", o cinismo na entonação de Suzana Salles deixa a canção ainda mais visceral. E, completando o time dessas cantoras maravilhosas, Ná Ozzetti oferece grande personalidade a "Inferno Particular" e "A Gente Se Fode Bem Pra Caramba", composições, por si só, excelentes.

E, o que dizer da sonoridade do disco? Bem, digamos que se os Los Hermanos e o Sonic Youth fossem a banda de apoio de um dueto com Tom Zé e Arrigo Barnabé, acho que daria uma boa amostra do que é "Cortes Curtos". De incursões circenses colocadas nos momentos certos ao mais puro punk indie barulhento distorcido de guitarras rasgantes, o som é o que podemos chamar de eclético. Sim, tem samba, rock, reggae, ska, MPB, e o que mais Dinucci achar que deve, e tudo soa muito bem, sendo incrivelmente harmonioso, mesmo que, como já dito, seja preciso escutar certas músicas mais de uma vez, e, assim, conseguir pegar  suas nuances.

O que tudo isso significa? Que estamos diante de um ótimo disco, candidato a ser um dos melhores de 2017. Um álbum, que ao contrário de muitos "alternativos famosos" por aí, não se prende a rótulos, nem apela para soluções fáceis, nem as difíceis que nunca "chegam lá". Multifacetado desde a superfície até o conteúdo, "Cortes Curtos" exala bom humor, revolta e reflexão. Não à toa, a capa do disco é uma foto que foi tirada no momento em que Dinucci era enquadrado por um policial durante um show em apoio ao Movimento Passe Livre. A arte imitando a vida... E, nada mais.

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NOTA: 8,5/10


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