Dica de Filme

Ecce Bombo
1978
Direção: Nanni Moretti


O cinema de Moretti não se presta a interpretações fáceis, muito menos, quer agradar a todos. Foge, inclusive, daquele típico humor italiano, cheio de histrionismos, apesar de seus filmes, em geral, serem repletos de verborragia. A cada produção feita, Moretti tenta nos dizer aquilo que mais o incomoda, mesmo que isso signifique colocar o dedo em algumas feridas. É essa provocação que vamos encontrar de maneira marcante aqui em "Ecce Bombo", feito nos longínquos anos 70, mas, que, já naquela época, mostrava o talento do cineasta para fazer do seu cinema uma válvula de escape para questões realmente importantes.

A história gira em torno da vida cotiana de estudantes universitários e suas ideias (ou, a falta delas) sobre as coisas do mundo. Basicamente, este é o fio narrativo do filme. O que vai fazer a diferença é o seu desenvolvimento, numa abordagem bastante crítica à alienação da juventude naquele período. Pra começar, estamos falando de uma geração pós-68, o "ano mais orgasmático do século 20", em que as ideologias afloraram, o anseio por liberdade aumentou e todo mundo parecia criar, ao mesmo tempo, consciência política. Só que, depois, veio uma espécie de "ressaca", já que o mundo continuou o mesmo, e as ideologias perderam muito de seu foco.




O núcleo de personagens principais de "Ecce Bombo" gira em torno de quatro jovens (Michele, Mirko, Vito e Goffredo). Cada um parece querer "inventar" alguma forma de depressão, algum conflito interno que seja para que se sintam úteis, ou até mesmo vivos. É, então, que têm a ideia de formarem um grupo de auto-ajuda, em que passam a maior parte do tempo falando para o nada, com discursos tão vazios quanto vaidosos. O único que parece ter alguma consciência é Mirko, que identifica a todo instante a inutilidade das ações de uma juventude mais preocupada em "parecer" do que "ser" de verdade. Ao passo que, entre eles, o mais narcisista é Michele, que, a todo instante, critica a tudo e a todos, mas, é incapaz de fazer uma auto-crítica.

Os sub-textos que Moretti vai colocando ao longo da trama nessa comédia um tanto improvável são, ao mesmo tempo, hilários e corajosos. Afinal, se hoje em dia boa parte dos militantes de plantão se recusa a refletir sobre as suas próprias ações, imaginem há quase 40 anos atrás, em que um, até certo ponto, ingênuo pensamento revolucionário estava, digamos, "na moda". A provocação é tamanha que, em determinado momento, os protagonistas, junto com outros estudantes, ocupam a universidade, só que ninguém aparenta estar entendendo o que está fazendo ali, sempre perdidos e com discursos prontos e sem profundidade. Diga-se de passagem que a juventude metida a revolucionária não é o único alvo de críticas de Moretti, já que os adultos da trama, os que sustentam todo esse sistema, mostram-se tão fracos quanto a militância que grita por "mudanças".




O melhor de tudo é que, extraindo-se todo o teor político e social do roteiro, ainda assim, estamos diante de uma ótima comédia, que arranca risos autênticos de situações absurdas, mas, nem um pouco apelativas. É particularmente muito engraçado quando os quatro jovens estão tentando aprender como ser um militante, decorando nomes históricos e datas, mas, sem nunca entenderem, de fato, o que estão lendo. As partes envolvendo as "terapias de grupo" deles também são muito boas em termos de humor, apesar de boa parte delas se concentrar na "mensagem" que Moretti quer passar, quando, por exemplo, alguém para, e diz, finalmente, alguma coisa relevante, como se o próprio cineasta estivesse dizendo isso a nós, num diálogo um pouco ríspido,  mas, honesto.

O começo do filme pode incomodar algumas pessoas, já que o ritmo da narrativa aparenta ser acelerado demais, com uma edição que não dá muito tempo ao espectador para assimilar tudo com calma. Mas, se formos pensar que o roteiro trata disso mesmo (a falta de reflexão decorrente de um conhecimento acelerado), talvez a opção por essa condução narrativa não seja tão inadequada assim. As atuações são um destaque muito positivo, em especial, a do próprio Moretti, que, inclusive, mostrou certa audácia ao interpretar o personagem mais irritante do filme (Michele), o que faz muito bem. Outro que merece menção é Fábio Traversa, como o introspectivo Mirko, e que protagoniza algumas das melhores cenas do filme.




Segundo filme de Moretti, e que foi indicado à Palma de Ouro em Cannes, "Ecce Bombo" é divertido e crítico em proporções iguais, sem abdicar da inteligência. Mostra, indiscutivelmente, que o cineasta já era inquieto logo no começo da carreira, fazendo aqui as críticas que queria fazer, apesar do risco das más interpretações que talvez surgissem (talvez, se muitos de hoje vissem essa produção, chamariam Moretti de "coxinha", o que não duvido nem um pouco). E, essa forma rasa da maioria ver as coisas só comprova que o diretor estava certo ao provocar o egocentrismo de um pessoal que pensa ter as respostas para tudo, mas, que não sabem tomar decisões simples por elas mesmas. Infelizmente, "Ecce Bombo" continua atual.


NOTA: 8,5/10



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