DICA DE FILME

Elle
2016
Direção: Paul Verhoeven


Um dos desafios do cinema atual é fugir dos lugares comuns. Só que essa tarefa não é tão fácil quanto se imagina. Dar, exatamente, o que o público quer é uma zona de conforto muitíssimo tentadora. Agora, claro, apelar para banalidades realmente rende ótimas bilheterias, mas, ao mesmo tempo, esses artifícios produzem, geralmente, filmes ruins. Não é o caso de "Elle", cujo assunto um tanto espinhoso pode incomodar os mais desavisados, só que a forma como tudo é abordado é feita de uma maneira tão diferenciada, que fica impossível não elogiar, pelo menos, o esforço de toda a equipe do filme.

E, um dos grandes diferenciais dessa mais nova produção comandada por Paul Verhoeven é a forma como a trama é conduzida, mostrando "gente de verdade" fazendo coisas, aparentemente, absurdas, mas, que num contexto mais frio e calculista, é quase exatamente como pessoas comuns se portam na realidade. O filme adiciona ainda o sempre pesado tema do estupro, mas, não como mote principal, nem como uma espécie de voyeurismo sádico do público cult em ver esse tipo de cena (vide todo o hyp em volta do asqueroso "Irreversível"). Não, nada é gratuito aqui; tudo soa bastante natural, mesmo que calculado para esse tipo de fluidez narrativa.




A todo momento, "Elle" desafia o público, inclusive, dando pistas de que vai por um caminho, para, algum tempo depois, seguir outro rumo, e nos deixar meio atordoados. E, tudo isso funciona devido a uma gama de ótimos personagens, a começar pela protagonista Michèle LeBlanc, cuja primeira aparição no filme se faz de forma bastante violenta, após sofrer um estupro dentro da sua residência. A partir daí, começa o desafio na cabeça de quem assiste. A atitude lógica seria ela ligar para polícia, ou algo do tipo, mas, o que assistimos é Michèle tratar o caso com extrema naturalidade, comprando alguns objetos para se defender e espreitando um pouco a sua casa, mas, sem demonstrar um grande medo de ser atacada novamente.

Com o passar do tempo, vamos sendo apresentados a outros aspectos na vida de Michèle, como o seu trabalho de executiva numa empresa que fabrica videogames. E, aí vem outro bom aspecto do filme: a crítica que parece ser involuntária. Os jogos desenvolvidos na empresa são muito violentos, não raro, com personagens masculinos subjugando os femininos, quase como num estupro. E, nesse aspecto, Michèle se mostra contraditória aos nossos olhos, já que incentiva os seus técnicos a desenvolverem jogos cada vez mais brutais. Num determinado momento, ela questiona até o porquê das personagens femininas de um determinado game não gemerem de dor como deveriam.




A vida particular dela também é pouco usual. O pai está totalmente ausente por motivos só revelados no decorrer da trama, e que são peças-chaves para entendermos um pouco a respeito de quem é Michèle e o que ela quer. Já, sua mãe começa a namorar um rapaz bem mais jovem do que ela, o que escandaliza a filha, fazendo esta ter atitudes bem cruéis. Sem contar com Michèle tem um filho absolutamente controlado pela namorada, e um ex-marido do qual ainda nutre, pelo visto, um sentimento um tanto doentio. E, todos esses personagens são muito bem desenvolvidos, sem uma falsa dicotomia entre pessoas boas e más; são apenas gente comum, com todos os defeitos que poderiam ter.

O roteiro, que podemos chamar de OUSADO, também aborda a questão das perversões e psicopatias, não só relacionadas ao estupro, mas, à necessidade de relacionamentos doentios, só para alguns possam se sentir membros da sociedade. Pessoas usando máscaras de bom-mocismo, mas, que, por trás, são capazes das piores barbaridades. Inclusive, a história ainda encontra espaço para abordar a religião, em diálogos ácidos a respeito do Papa, ou em atitudes mais específicas dos personagens, evidenciando a sua hipocrisia. Nesse contexto, chega a ser simbólica a cena em que Michèle confessa que traia a amiga com o marido dela, sob a justificativa de estar cansada de mentir.




Os atores estão, em sua maioria, excelentes, com destaque óbvio para Isabelle Huppert, cuja personagem Michèle caiu como uma luva para a sua persona de olhar frio da atriz. Mas, existem muitos outros destaques, como Laurent Laffit, como o vizinho atencioso Patrick, a quem Michèle nutre uma certa paixão, e o jovem Jonas Bloquet, que interpreta o filho da protagonista, Vincent, um papel forte, aonde o trabalho do ator consegue passar uma profunda piedade diante da mediocridade de alguém como Vincent. E, tudo conduzido com segurança por um Verhoeven maduro, talvez um pouco tímido na explicitude da violência, mas, primoroso na construção de sutilezas que vão, aos poucos, desconcertando o espectador. Um dos melhores trabalhos do cineasta (o que não é pouco).

"Elle" é um filme diferente. Diria até difícil. Sem soluções fáceis para os absurdos que vemos na tela, e com uma narrativa verdadeiramente interessante, que prende o espectador, a produção é uma experiência que não pretende agradar, mas sim, tirar o espectador do lugar comum, da zona de conforto. Ainda consegue um feito pouco visto hoje em dia: é um filme pelo filme em si. Não se presta a muitas explicações, a flashbacks desnecessários, ou qualquer coisa do tipo. As ações vão correndo no tempo certo, e as consequências vindo em seguida, sem atropelos. E, por fim, se "Elle" está incomodando tanto, talvez seja porque ele exponha bem a nossa letargia e a nossa falta de senso para o absurdo da violência que nos atinge atualmente.


NOTA: 8,5/10



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