Dica de Documentário

Martírio
2016
Direção: Vicent Carelli


O Brasil não conhece os seus índios. A representação que temos dos nativos que aqui (sobre)vivem é o mais estereotipado possível: o indígena caricato norte-americano, dos filmes de faroeste. Isso porque temos dificuldade em aceitar que existam povos bem próximos a nós, que foram pioneiros nessas terras, e que após anos de perseguições e massacres, desejam apenas um pouco do que lhes foi tirado. Claro, o senso comum é taxativo ao colocar os índios como aqueles que atrasam o progresso. E, uma das etnias que mais vem lutando por seus direitos, e tem pago um preço altíssimo por isso, é a dos Guarani-Kaiowá, que, atualmente, são cerca de 60 mil em todo o território nacional.

Apresentado este ano pela primeira vez no Festival de Brasília, o ótimo documentário "Martírio", do cineasta francês (e morador da cidade pernambucana de Olinda há 16 anos) Vincent Carelli, em parceria com Ernesto de Carvalho e Tita, é o segundo título de uma trilogia que começou com "Corumbiara" (sobre o massacre de 12 índios, ocorrido em  Rondônia, no ano de 1995), e que se encerrará com "Adeus, Capitão", ainda em fase de produção. "Martírio" retrata nada menos do que 100 anos de lutas da etnia dos kaiowá em busca do mínimo que o Estado tem a obrigação de oferecer. O filme percorre, assim, todo o Mato Grosso do Sul, reduto dos guarani-kaiowá, indo parar até Brasília, quando mostra a peregrinação desses indígenas ao Congresso Nacional, afrontando, obviamente, a Bancada Ruralista, um grupo de políticos que vê nos índios uma ameaça aos seus negócios na agropecuária.



O documentário, à primeira vista, pode parecer demasiadamente longo (160 min., quase três horas), mas, não é. Cada minuto dele era necessário que fosse contado. O material é extenso e aborda diversos temas. Há os lamentáveis embates com fazendeiros (o que resultam em confrontos armados, aonde os índios, geralmente, são os mais prejudicados), um panorama histórico dos indígenas na região (abordando diversos governos, de Getúlio Vargas até os Ditadores Militares, chegando à gestão de Dilma Roussef), passando, lógico, pelos costumes da etnia dos kaiowá. Mesmo com temas tão diversos, o longa aborda de maneira muito sensível, e, ao mesmo tempo, lúcida, cada uma dessas questões, sem nunca abdicar do seu foco: mostrar respeito e dignidade à população indígena.

Um dos melhores momentos de "Martírio", sem dúvida, é quando uma comunidade dos guarani-kaiowá, formada por dezenas de indígenas, invade o Congresso Nacional em 2013, já que os políticos de lá se recusavam, terminantemente, em recebê-los. Nesse embate de forças com o meio político, há uma verdadeira via crucis dos índios contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que retira como tarefa exclusiva do Executivo, junto com a Funai, a questão da demarcação das terras indígenas. Isso passaria a ser delimitado pelo Legislativo, o que é, em linhas gerais, bastante afrontoso, visto que a Bancada Ruralista iria determinar essas demarcações de acordo com os seus próprios interesses, evidentemente.



Outro momento impactante do longa, e que merece destaque, é o caso da morte e do desaparecimento do corpo do líder Nísio Gomes na comunidade do Guaiviry em 2011, o que resultou no indiciamento de mais de 20 pessoas, entre elas, um chefe do setor industrial do local, além de profissionais ligados à segurança privada. Nessa questão, um dos depoimentos resume bem o nível de barbárie: “Para os índios é muito desorientado não ter o corpo, não poder enterrar”. Há outra passagem no documentário bastante tensa, mas, também um tanto inusitada, que é quando um policial federal pressiona os índios a desocuparem uma terra que eles tinham ocupado. “Essa foi uma cena gravada pelo tradutor que participava da conversa, a quem entregamos uma câmera”, conta o diretor Carelli.

"Martírio" é, enfim, um grande documento desmistificador. Retrata o povo indígena sem a distância de um observador, meramente, curioso, e aponta caminhos tanto para uma convivência pacífica com os demais moradores das regiões onde vivem, quanto para incentivá-los a que continuarem lutando contra as várias formas de violência que sofrem. Como todo bom documentário, provoca o debate necessário para que possamos entender as necessidades dos índios, que são tão brasileiros quanto qualquer um de nós. Como Carelli mesmo fala a uma das indígenas revoltada com a situação de opressão que vivem: “Falem! Tem muita gente boa que vai ouvir vocês. E, é essa gente que, junto com vocês, irá pressionar para que as coisas melhorem.”


NOTA: 8,5/10



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