Dica de Livro

Satã em Gorai
1933
Autor: Isaac Bashives Singer


"Mas, agora maus dias sobrevieram a Gorai. Seus melhores cidadãos eram trucidados. A maior parte dos homens que sobreviveram eram jovens. Embora a terra estivesse em paz, o medo de novas tribulações nunca abandonava os judeus. Pior do que tudo, nessa época em que a unidade era mais necessária, cada homem seguia seu próprio caminho, não querendo mais dividir a responsabilidade geral. Muitas vezes, Rabi Benisch convocou uma reunião, só para ver os cidadãos cochilarem ou ficarem a bocejar de olhos fixos nas paredes. Eles concordavam com tudo e não executavam nada."

As tradições que nos são ensinadas ainda na infância nos perseguem para o resto da vida. Mesmo que lutemos contra, buscando novos horizontes, novas ideias, algo desse período fica enraizado na alma, e influencia de alguma maneira nossas ações. O escritor Bashives Singer parecia viver atormentado pela tradição judaica à qual fora criado. Isso se reflete muito bem em sua obra. Em especial, na sua estreia na literatura, com "Satã em Gorai".


Tudo no livro respira, assombrosamente, a alguma tradução do Judaísmo, e isso implica dizer que demônios (literais ou não) vão surgir no enredo, muitas vezes, de maneira brutal. Bom recordar que este livro foi lançado no período entre Guerras, ou seja, a própria instabilidade dos judeus na Europa Ocidental (Bashives era polonês) começava a ficar ameaçada, culminando, alguns anos depois, com o terror do Holocausto.

Mas, a guerra que lemos em "Satã em Gorai" é mais interna e espiritual, aonde uma população inteira de uma cidade vive, respira e morre por sua tradição religiosa. Trata-se da Gorai do título, e o período histórico data de 1648, que judeus foram quase que exterminados na Polônia pelos cossacos. Depois do horror, a pequena Gorai começa a se reerguer, ao mesmo tempo em que os males de uma sociedade fechada vão aparecendo.


Nesse contexto, surge o fanatismo religioso, impulsionado pela vinda de um suposto messias que arrebataria o povo judeu. E, a figura messiânica vem na forma de um suposto guerreiro, chamado Shabtai Levy, que, a cada vez que é contada uma história sobre ele, é sempre algo fascinante, sobre-humano, um semi-deus montado num leão, e arrasando cidades pecadoras. Numa cidade carente de ídolos e símbolos como Gorai, a figura de Shabtai cai como uma luva.

Sucedem-se inúmeros acontecimentos, alguns, realmente fascinantes, outros forçados na interpretação, só para corroborar a autenticidade desse "salvador". Entram na história personagens muito fortes, como Rochale, filha da família mais rica de Gorai, e que será ponto fundamental para os estranhos acontecimentos sobrenaturais que se abaterão sobre a cidade, e Itsche Mates, devoto de Shabtai, e que também será o pivô do próximo inferno que Gorai ainda irá passar.


O Demônio do título tanto pode ser entendido como uma metáfora para os medos mais ocultos de uma sociedade, fazendo com que ela comete as piores atrocidades, ou, simplesmente, como uma força, de fato, espiritual, que atormentará os moradores da cidade para que eles exponham o que de pior suas almas possuem. E, é aí que o livro ganham intensidade. Como o arrebatamento do salvador não vem, muitos moradores de Gorai, cometem os mais horrendos pecados para forçar a vinda do Juízo Final. Também é uma fortíssima referência à podridão da sociedade nos dias atuais.

Por ter sido o primeiro de diversas grandes obras do autor, "Satã em Gorai" é considerado um "livro menor" de Bashives Singer. Mas, entendam esse menor como uma comparação à outros escritos dele, que, de fato, são maravilhosos. Porém, nem de longe, este livro é ruim, sequer, mediano. O texto de Bshives é simples, porém, embutido de uma complexidade a respeito do humano e suas deficiências, que, por vezes, o livro se assemelha a algo mais voltado para o terror, principalmente, o psicológico. É, acima de tudo, um forte estudo sobre como a fé de um povo caminha junto com os seus terríveis defeitos. Acima de tudo, atualíssimo.


NOTA: 8,5/10

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